Sem planejamento que acompanhasse o desenfreado avanço populacional, capitais brasileiras viraram símbolos de trânsito caótico, trasporte coletivo lotado e longos deslocamentos de trabalhadores.

Leão Serva
SÃO PAULO

Quando a seleção brasileira entrou em campo na Copa do México, em 1970, a torcida cantava um hino que dizia: “90 milhões em ação”.

Ao começar a Copa da Rússia, neste ano, a população brasileira era estimada em 213 milhões. Foi um aumento de quase 2,5 vezes em meio século.

O Brasil experimentou crescimento populacional explosivo nas últimas décadas. Mas essas proporções parecem pequenas quando comparadas à migração das áreas rurais para centros urbanos.

Segundo o IBGE, em 1950, um terço dos brasileiros morava em cidades. De 1950 até 2018, a população urbana decuplicou, partindo de 18 milhões para atingir 180 milhões.

Talvez nem mesmo o fluxo migratório atual do Oriente Médio e da África para a Europa tenha impacto semelhante ao que o Brasil sofreu nos últimos 70 anos. A tensão social só não foi maior porque o país teve crescimento econômico.

Não houve planejamento urbanístico que desse conta do impacto da urbanização vertiginosa. Como resultado, as cidades têm problemas em todas as áreas.

Não poderia ser diferente na mobilidade: São Paulo e outras capitais se tornaram símbolos de trânsito caótico, poluição alarmante, deslocamento entre casa e trabalho que demora horas e transportes coletivos lotados.

Na virada do século, a bomba demográfica brasileira parece ter reduzido parte de seu impacto. Se o século 20 foi de crescimento desenfreado, o 21 tende a ser marcado por relativa estabilização demográfica, indicando a possibilidade de que as metrópoles consigam concentrar esforços em corrigir problemas e estabelecer condições para uma vida urbana menos tumultuada e desconfortável.

A cidade de São Paulo, maior do país e símbolo do crescimento vertiginoso do século 20, vive uma fase de estabilidade populacional em torno de 12 milhões de habitantes nas fronteiras do município.

A curva de crescimento plana, no entanto, esconde uma movimentação interna. Bairros centrais, com infraestrutura consolidada há décadas, têm perdido população a partir dos anos 1980, enquanto cresce o contingente de moradores em bairros da periferia, carentes de escolas, hospitais e empregos – além de boas opções de transporte.

Esse desenvolvimento desigual mantém a pressão por soluções de mobilidade que permitam aos moradores de áreas distantes chegarem até os locais de trabalho, concentrados em regiões centrais.

Um caso conhecido, mas ainda sem solução, é o de Cidade Tiradentes, bairro de habitações populares na zona leste paulistana, construído pela Cohab (companhia metropolitana de habitação) como uma espécie de “Minha Casa Minha Vida” dos anos 1980.

Ao completar 34 anos de sua inauguração, a prefeitura registra pouco mais de 200 mil habitantes, mas a região oferece apenas cerca de 10 mil empregos. Assim, os trabalhadores têm que se deslocar diariamente por 35 quilômetros até o centro em busca do seu ganha-pão.

A relativa estabilidade populacional vai dar aos próximos governos a chance de estabelecer prioridades na área de mobilidade.

Trata-se de construir menos vias, mas melhorar os serviços de condução das pessoas por ruas e avenidas. Ou como dizem alguns urbanistas ouvidos pela Folha , trata-se de pensar menos no hardware urbano e mais no software.

É preciso conter a primazia dos carros para país ter transporte eficiente

Em busca da industrialização acelerada, Brasil privilegiou automóvel em detrimento de meios públicos, como ônibus e metrôs; escolha contribuiu para gerar sistemas de mobilidade mal planejados.

Fabrício Lobel
SÃO PAULO

Uma corrida de carros. Foi assim que o então presidente Juscelino Kubitschek encerrou os festejos pela inauguração da capital federal do país, em 1960. Na nova cidade de Brasília, automóveis em alta velocidade trafegando pelas longas pistas asfaltadas eram a metáfora de um Brasil que precisava crescer e acelerar para o futuro.

Décadas depois daquela competição, Brasília convive, a exemplo de quase todas as grandes cidades brasileiras, com congestionamentos diários que parecem sem solução e com uma frota de veículos que não para de aumentar.

Quem estuda a origem dessa situação aponta como causa da crise de mobilidade o papel secundário que sempre se reservou ao transporte público.

Para modificar esse quadro, dizem especialistas, não basta começar a priorizar os meios coletivos, a eles destinando mais espaço e investimentos -é preciso enfrentar privilégios que veículos individuais usufruem nas principais cidades do Brasil.

Uma das evidências da primazia do automóvel em políticas públicas está na nova edição de um estudo da ANTP (Associação Nacional de Transportes Públicos) que estima um gasto nacional de R$ 11,8 bilhões com a manutenção de vias dedicadas ao transporte individual.

Enquanto isso, a preservação de trajetos utilizados pelo transporte coletivo recebeu investimentos de R$ 3,4 bilhões (já incluindo os metrôs).

A defasagem ocorre apesar de se saber que cerca de metade da população brasileira que utiliza transportes motorizados trafega de ônibus, trens e metrôs. Para eles, o transporte coletivo é gênero de primeira necessidade.

Esse cenário começou a ser delineado antes da corrida promovida por JK em Brasília e do projeto desenvolvimentista daquela época.

Já no final dos anos 1920, por exemplo, São Paulo enfrentou o dilema que quase toda cidade brasileira mais cedo ou mais tarde precisou resolver -como organizar o seu crescimento.

Uma das sugestões foi apresentada pela Light, empresa que operava os já lotados bondes paulistanos. A ideia era criar o primeiro metrô do país, abrindo túneis e vias exclusivas dedicadas ao transporte de massa no centro da cidade.

Porém, durante o debate público, o projeto foi vencido por outra proposta, o Plano de Avenidas de Prestes Maia.

Em oposição ao modelo da Light, que concentrava a cidade dentro de seu núcleo principal, o projeto de Prestes Maia era expandir a área urbana, criando bairros menos adensados na periferia. Para conectar esses núcleos esparsos, o meio de transporte ideal era o símbolo do futuro, o carro.

Esse era o debate no mundo urbanístico à época: de um lado, cidades muito centralizadas, ao estilo europeu; de outro, centros em constante expansão, ao estilo americano.

“Após a Primeira Guerra, os EUA viraram o espelho perfeito para o país que o Brasil queria ser. Uma nação nova, em franca expansão, com grande território e população, além de ter recursos aparentemente inesgotáveis. Ninguém queria ser uma Europa destruída pela guerra”, afirma o urbanista Ayrton Camargo e Silva.

Mas o grande estímulo ao carro veio mesmo com Juscelino, nos anos 1950. Um dos capítulos do plano de metas de JK (conhecido como 50 anos em 5) trazia a promessa de aumentar de cerca de 31 mil para 170 mil a produção de automóveis no país.

O governo tinha um grupo executivo com a tarefa de planejar o apoio à industria, cujo desenvolvimento fazia sentido naquele tempo.

O BNDE (atual BNDES, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) fazia parte desse conselho e via com bons olhos o incentivo à produção automobilística, que teria repercussões positivas em cadeia na economia. Gastos energéticos e emissão de poluentes não eram preocupações à época.

Nas décadas seguintes, as prefeituras das cidades não conseguiram aproveitar o boom viário e automobilístico para impulsionar devidamente seus sistemas de ônibus.

As linhas dos coletivos na maioria das vezes cresciam pela exploração privada do serviço. Nesse arranjo, as empresas competiam pelas rotas mais rentáveis, enquanto bairros menos populosos e distantes eram deixados em segundo plano.

Não havia planejamento central por parte das prefeituras. Quando, enfim, os governos resolveram assumir mais controle sobre o desenvolvimento do sistema, se depararam com cidades dependentes das empresas de ônibus que haviam sobrevivido à disputa por passageiros.

Ainda que de maneira pouco planejada, foi graças aos sistemas de ônibus que a população brasileira -cada vez mais urbana- passou a ir ao trabalho, já que os trilhos não se tornaram suficientes.

Até 2015, segundo a ANTP, o ônibus era o principal meio de transporte dos brasileiros, perdendo apenas para trajetos feitos a pé.

Dados do estudo do ano seguinte, mostram, contudo, que o carro já ultrapassou o ônibus, concentrando 16,2% dos deslocamentos no país. Os ônibus ficaram em segundo lugar, , com 15,9%. Motos, com 2,7%, e trens e metrôs com 2,4% das viagens realizadas pela população.

Desde o ano 2000, a frota total do Brasil (automóveis, motos, caminhões, ônibus etc.) mais que triplicou, pulando de 30 milhões para 98 milhões, mas a imensa maioria é de veículos para transporte particular e individual.

A ANTP calculou seguidas quedas no número de viagens feitas pelo transporte público no país, entre 2003 e 2014. No mesmo período, as viagens por carros e principalmente por motos só aumentaram.

Os trilhos poderiam ter ajudado a aliviar a pressão sobre as ruas, mas a era dos metrôs só veio a partir da década de 1970, com a inauguração do primeiro trecho em São Paulo (1974) e no Rio (1979). Ainda assim, o ritmo de crescimento da malha metroviária nunca alcançou os anseios da população.

Centros urbanos latino-americanos como Cidade do México e Santiago têm a relação de 1 quilômetro de metrô construído para cada 39 mil e 26 mil habitantes, respectivamente. Em São Paulo, cada quilômetro de metrô equivale a uma população de 135 mil habitantes. No Rio, 120 mil.

Fonte: Folha de S. Paulo