Quem utiliza ônibus e paga para girar a roleta, em geral, não sabe que está bancando também a viagem de diversos grupos sociais contemplados com isenção total ou parcial da passagem. Estamos falando das gratuidades, benefícios concedidos a determinadas classes de usuários que, por força de leis ou decretos, tornam-se isentos do pagamento da tarifa do transporte público coletivo urbano. No Brasil, segundo o Anuário 2014/2015 da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), o número de passageiros que circula de graça ou com algum desconto aumenta cerca de 1% anualmente, com acréscimo de impressionantes 120 milhões de viagens a cada ano desde 2013.
A Constituição Federal de 1988 determina apenas uma gratuidade nos transportes coletivos urbanos: para maiores de 65 anos, prevista no artigo 230. Há, ainda, três legislações federais que concedem benefícios tarifários a carteiros, fiscais do trabalho e oficiais de Justiça Federal. Entretanto, como existe a abertura para que estados e municípios possam legislar sobre o assunto, atualmente são inúmeros os tipos de gratuidades, que variam de um local para o outro.
Entre os que mais impactam no setor estão os passes estudantis. Integrais ou parciais, os passes são concedidos principalmente a alunos dos ensinos fundamental, médio e superior, e estão sujeitos às regras e à realidade de cada local. Existem cidades que levam em consideração o critério econômico, de forma que só têm direito os estudantes com renda familiar pré-determinada, e outras que estabelecem distâncias mínimas entre a casa e a instituição de ensino para que seja feita a concessão, por exemplo.
Mas a lista não termina aí. Hoje, é extensa a relação de categorias com benefícios previstos em leis, especialmente municipais. Entre elas estão bombeiros, oficiais de justiça, policiais civis e militares, agentes penitenciários, guardas municipais, fiscais das empresas de transporte, pessoas com necessidades especiais e seus acompanhantes. Em algumas cidades, há até datas especiais em que é obrigatória a concessão de passe livre, a exemplo de dias de vacinação e celebrações de santos padroeiros locais.
“As gratuidades e os benefícios tarifários têm impacto direto no custo do sistema de transporte público urbano, pois, na grande maioria dos casos, as legislações estabelecem o direito, mas não indicam fontes para custeá-lo. Assim, o cálculo do preço das tarifas leva em conta somente os passageiros pagantes, de forma que o serviço é ofertado para a totalidade de pessoas, mas apenas parte da sociedade arca com os custos. Isso significa que, quanto mais gratuidade houver, sem fonte de custeio, mais caro será o transporte para a população comum”, lamenta o diretor administrativo e institucional da NTU, Marcos Bicalho.
Transporte caro, desigual e sem qualidade
Levantamento realizado pela NTU em 28 cidades mostra que o impacto dessas gratuidades nos custos da tarifa chega a 18%, em média, no país. Em outras palavras, a tarifa para usuários pagantes poderia ser reduzida em quase um quinto do valor se houvessem outras fontes que cobrissem esse impacto. Boa parte dos municípios sequer prevê subsídios para custear esses benefícios. Dessa forma, as tarifas ficam mais caras e o sistema, engessado em termos de investimentos em infraestrutura e melhorias no serviço. Mesmo as cidades que destinam recursos públicos para arcar com as gratuidades enfrentam, muitas vezes, problemas com a demora nos repasses ou recursos insuficientes para cobrir todos os custos envolvidos.
E, claro – como não poderia deixar de ser –, quem mais sofre com isso é a parcela mais pobre da população. Isso fica comprovado na Pesquisa Mobilidade da População Urbana 2017, realizada pela NTU em parceria com a Confederação Nacional do Transporte. Segundo o estudo, 59% da população se desloca diariamente. Desse total, 69,8% são das classes C e D/E, enquanto 27,3% ocupam a classe B e 2,9%, a classe A. “A gratuidade sem fonte de recurso significa, na prática, que os mais pobres é que estão bancando essa política social do governo”, observa Marcos Bicalho.
Para piorar o que já não está bom, há uma tendência forte, no Brasil, de ampliação da faixa etária de idosos com direito à gratuidade, com o objetivo de contemplar também aqueles com idade entre 60 e 64 anos. Em 22 de dezembro do ano passado, a NTU fez um levantamento que revelou um total de 62 cidades com gratuidade a partir dos 60 anos. Não há como saber quantas pessoas estão sendo efetivamente beneficiadas, já que, entre as cidades que implantaram a modalidade ampliada, 23 não possuem cartão específico para esse fim e não controlam o acesso de idosos, 22 trabalham com cartão próprio e apenas 17, além de cartão, fazem controle da quantidade de pessoas contempladas.
Em Aracaju, foi aprovado por unanimidade, em 19 de dezembro, no apagar das luzes de 2017, o Projeto de Lei 102/2017, que inclui a gratuidade para essa parcela da população. Apoiada no artigo 39 do Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2013) – que além de assegurar os maiores de 65 anos, abre a possibilidade de legislações locais incluírem pessoas com 60 a 64 anos na lista de beneficiados. A proposta de Aracaju ainda precisa de aval do prefeito para entrar em vigor.
Em Brasília, a Câmara Legislativa do Distrito Federal aprovou a medida, em dois turnos, também em dezembro passado. Por ser uma emenda à Lei Orgânica do DF, não depende da aprovação do governador. Para o diretor Nacional do Instituto Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte Público de Qualidade (MDT) e diretor do Instituto da Mobilidade Sustentável (Rua Viva), Nazareno Stanislau Affonso, a ampliação da faixa etária é inoportuna. “Apenas parte da população paga pelas gratuidades, isso representa mais peso. São injustiças sociais que perduram no país há muito tempo. A gratuidade virou, na verdade, um capital político, uma espécie de moeda de troca. Quem propõe um benefício como esse, normalmente, deseja e recebe um retorno da sociedade”, critica o urbanista.
Além disso, as propostas para incluir idosos com idade entre 60 e 64 anos entre os beneficiados nada contra a maré do desenvolvimento do país. Isso porque a expectativa de vida dos brasileiros tem crescido vertiginosamente ao longo dos anos. De 1940 a 2016, aumentou em 30,3 anos, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), chegando a 75,8 anos em média, conforme dados de dezembro do ano passado. As melhorias em campanhas de saúde e em saneamento básico estão entre os fatores que contribuíram para a evolução. Assim, as pessoas estão vivendo mais, se cuidando mais e trabalhando por um prazo prolongado, de modo que não se justifica a concessão ao grupo – que reúne muitas pessoas ainda ativas economicamente.
Marcos Bicalho também é contrário à redução da faixa etária. “O Brasil acaba regredindo, pois, ao mesmo tempo em que aumenta a expectativa de vida, começa a conceder vantagens à população cada vez mais cedo. Esse é um fator negativo, tanto na questão da justiça social, por jogar o custo dessa benesse nas costas da parcela mais pobre da população; quanto por oferecer um benefício desnecessário em termos de assistência ao idoso. A qualidade de vida está aumentando e as pessoas estão vivendo mais. Não há sentido nisso”, ressalta.
Fonte: NTU